Ataques fatais de animais selvagens contra seres humanos não são novidade. O que torna certos episódios excepcionais é quando os próprios animais demonstram tamanha astúcia e consciência que invertem a lógica natural: o caçador vira a presa. Foi exatamente o que ocorreu no final do século XIX, às margens do rio Tsavo, no atual Quênia, quando dois leões sem juba atacaram e devoraram dezenas de trabalhadores que construíam uma ponte ferroviária para o Império Britânico. O terror durou nove meses.

O início da construção

Em março de 1898, os britânicos iniciaram a construção de uma ponte sobre o rio Tsavo, parte do projeto ferroviário que ligaria Uganda ao porto de Kilindini, no Oceano Índico. Para tocar a obra, cerca de 3 mil trabalhadores indianos e africanos foram distribuídos em diversos acampamentos ao longo de um trecho de mais de 10 quilômetros. No comando da empreitada estava o tenente-coronel John Henry Patterson, engenheiro militar e ex-caçador de tigres com experiência na Índia.

John Henry Patterson

Os primeiros ataques

Logo após sua chegada, Patterson começou a receber relatos de trabalhadores desaparecidos. Descartou os casos como fugas ou ataques de bandidos, comuns naquela região. Alguns rumores, no entanto, mencionavam leões sem juba invadindo os acampamentos durante a noite e arrastando homens de dentro de suas tendas. Patterson não deu crédito. Até que três semanas depois, o supervisor sikh Ungan Singh foi capturado por um leão diante de colegas horrorizados. No dia seguinte, Patterson encontrou seu corpo despedaçado, restando apenas ossos e a cabeça com uma expressão de puro pavor. Foi ali que ele percebeu que tinha um problema muito mais sério em mãos.

A tenda de onde o Jemadar Ungan Singh foi levado

Medidas inúteis de proteção

Embora ataques de leões fossem conhecidos na África, os locais dispunham de métodos tradicionais para dissuadi-los, como fogueiras durante a noite, cercas de espinhos chamadas bomas, e toques de recolher rigorosos. Tudo foi aplicado, sem resultado. Os leões atravessavam as barreiras, ignoravam o fogo e pareciam escolher suas vítimas com precisão. Eram silenciosos, determinados e não se comportavam como leões comuns. Muitos trabalhadores passaram a acreditar que estavam lidando com espíritos vingativos enfurecidos com a construção da ferrovia sobre suas terras ancestrais.

Os acampamentos foram protegidos com cercas de espinhos

Uma pausa no terror

Os ataques seguiram implacáveis durante semanas, até cessarem subitamente. Ninguém sabia o motivo. Patterson, aliviado, retomou as obras, e os trabalhadores voltaram às suas funções. No entanto, durante esse período, ataques semelhantes foram registrados em regiões próximas, indicando que os leões provavelmente apenas se deslocaram. Em junho, o pesadelo recomeçou, agora com os animais voltando à área principal.

Ponte de Tsavo em processo de construção

O retorno dos leões

Novos desaparecimentos foram registrados. Em poucos dias, Patterson recebia relatos de ataques quase diariamente. Os leões haviam voltado e agora estavam mais ousados: arrastavam homens das barracas enquanto os demais ouviam, impotentes, o som dos ossos sendo esmagados na escuridão.

Tropas foram enviadas para caçar os animais. Armadilhas com carcaças envenenadas foram posicionadas. Nada funcionou. Os leões ignoravam as iscas, driblavam os soldados e chegaram a invadir o hospital, matando um paciente e ferindo outros dois.

Os dois pacientes feridos estavam cobertos por uma parte da tenda que havia caído sobre eles

A falha de Whitehead

Patterson pediu reforços, e o oficial de distrito Whitehead chegou com o sargento Abdullah, que carregava uma lamparina. Enquanto caminhavam por um trecho escuro, um leão saltou de um barranco, ferindo Whitehead nas costas. Whitehead disparou, assustando o leão, mas ele atacou Abdullah, que só conseguiu dizer “Eh, Bwana, simba” (“Oh, mestre, um leão”) antes de ser arrastado para longe. Whitehead escapou com ferimentos leves.

Whitehead em um carrinho no exato local onde o leão saltou sobre ele

Patterson relatou ter ouvido, durante a noite, os gritos horríveis e agonizantes do sargento Abdullah sendo atacado e devorado por um dos leões. Esse som aterrorizante abalou profundamente os nervos de todos no acampamento, deixando claro o perigo iminente e cruel que enfrentavam.

Abdullah e suas duas esposas

A armadilha humana

Em dezembro, o pânico chegou ao ápice. Trabalhadores começaram a fugir para qualquer trem que seguisse rumo ao litoral. Muitos passaram a dormir sobre galhos de árvores, temendo as tendas. Um desses galhos cedeu sob o peso. A obra foi paralisada. Os leões estavam vencendo.

Em uma tentativa desesperada, Patterson construiu uma armadilha engenhosa: uma jaula reforçada com barras de aço, espaçosa o suficiente para abrigar três homens em seu interior, que serviriam de isca viva. Os próprios trabalhadores se ofereceram para a arriscada missão. A ideia era que, ao entrar na armadilha para capturar uma vítima fácil, o leão ficasse preso atrás de uma pesada porta basculante, acionada por um gatilho no chão.

Armadilha de Patterson

Na calada da noite, o leão caiu na armadilha. O plano havia funcionado. Mas quando os homens dentro da jaula, apavorados, tentaram matá-lo, erraram os disparos. Em meio ao pânico, um dos tiros apenas feriu de raspão a fera, que conseguiu escapar pela abertura lateral, deixando para trás um rastro de sangue e frustração. Foi um golpe duro para Patterson, que sabia o quanto era raro aquele tipo de oportunidade.

O primeiro leão cai

Patterson, frustrado com o fracasso de suas táticas de caça aprendidas na Índia, sabia que precisava de sorte. E ela veio no dia 9 de dezembro, quando um trabalhador informou que um leão devorava um burro perto do rio. O engenheiro correu até lá com um rifle duplo, aproximou-se a 15 metros e puxou o gatilho. Nada aconteceu. A arma falhou. O leão o encarou. Em pânico, Patterson esqueceu de disparar o segundo cano. Por sorte, a fera apenas se afastou calmamente.

Ainda assim, havia esperança. O burro estava parcialmente comido e talvez o leão voltasse. Patterson montou uma plataforma numa árvore próxima, armou-se novamente e esperou. Durante a noite, foi acordado por ruídos na mata. O leão estava ali, circulando sua posição. Quando a sombra do animal apareceu sob a plataforma, Patterson disparou repetidas vezes. O leão fugiu ferido.

Na manhã seguinte, encontraram-no morto, com um tiro fatal no coração. Media quase três metros e foi necessário um grupo de homens para carregar o corpo até o acampamento. Um havia caído. Faltava o outro.

Corpo do primeiro leão

A caçada ao segundo leão

O segundo leão, mais forte e ainda mais inteligente, atacava com frequência. Em uma tentativa de emboscada, Patterson amarrou cabras vivas presas a um trilho de aço e montou nova plataforma. O leão voltou, matou uma das cabras e arrastou o trilho inteiro para dentro da mata. Patterson atirou — e acertou uma cabra.

Nos dias seguintes, acompanhado de seu ajudante Mahina, seguiu rastros do animal. De repente, foram surpreendidos pelo rugido do leão, que saiu do mato em disparada, espalhando os homens em todas as direções. Mas em vez de atacar, o animal sumiu novamente. Patterson montou outra emboscada.

Quando finalmente o leão apareceu, levou dois tiros de alto calibre no ombro. Caiu. Patterson acreditou que havia vencido. Mas a fera se levantou e fugiu. Durante dez dias, seguiu-se o rastro de sangue. Nada. Até que, no dia 27, o animal invadiu o acampamento, chegando a espiar dentro das cabanas vazias.

Determinado, Patterson montou mais uma vigília. De madrugada, viu o leão surgir das sombras. Atirou no peito da fera, que desapareceu. Horas depois, encontrou-o escondido na vegetação. O primeiro disparo o fez cair. O segundo o derrubou. Mas ele se levantou. O terceiro tiro não surtiu efeito. Patterson correu, esquecido do rifle reserva. Subiu de volta à plataforma no último instante. Pegou outra arma e disparou novamente. O leão caiu, mas se fingia de morto. Quando Patterson desceu da árvore, a criatura se ergueu e avançou. Foram necessários vários tiros a queima-roupa para matá-lo, a poucos passos de distância.

Plataforma onde Patterson montou vigília

O fim do terror

O segundo leão media pouco menos que o primeiro, mas foi infinitamente mais difícil de matar.

Patterson declarou que 135 pessoas haviam sido mortas pelos leões. Os registros ferroviários oficiais citam 28 mortes entre trabalhadores indianos. O Museu Field, em Chicago, onde os leões empalhados estão hoje expostos, estima um total de 35 vítimas. A discrepância se deve, segundo Patterson, ao fato de que muitas mortes ocorreram entre trabalhadores africanos não documentados.

Os leões de Tsavo podem ser vistos hoje no Museu Field, em Chicago.

A ponte sobre o Tsavo foi concluída em fevereiro de 1899. Anos depois, durante a Primeira Guerra Mundial, ela foi destruída pelas forças alemãs na campanha da África Oriental. No entanto, após o conflito, a ponte foi reconstruída e modernizada, continuando a servir como uma importante ligação ferroviária na região.

A ponte de Tsavo concluída.

Sobre o livro e o filme

Todo o relato apresentado neste artigo foi baseado no livro The Man-Eaters of Tsavo, escrito por John Henry Patterson e publicado originalmente em 1907. A obra traz, em primeira pessoa, os detalhes da experiência do autor durante a construção da ponte ferroviária no Quênia e sua luta contra os dois leões que aterrorizaram os acampamentos.

Embora esteja disponível apenas em inglês, o livro é uma leitura intensa e fascinante, especialmente para quem gosta de histórias reais de sobrevivência, aventura e conflitos entre homem e natureza. Patterson não apenas narra os ataques, mas descreve com precisão o ambiente hostil, os desafios logísticos e o impacto psicológico de enfrentar predadores tão determinados.

Para quem prefere algo mais acessível, a história também inspirou o filme A Sombra e a Escuridão, lançado em 1996. Estrelado por Val Kilmer e Michael Douglas, o longa é livremente baseado nos eventos descritos por Patterson. Embora traga muitas liberdades criativas e personagens fictícios, pode ser uma boa porta de entrada para quem deseja conhecer essa história impressionante — e depois se aprofundar no relato original com a leitura do livro.

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Última Atualização: 18 de julho de 2025